Garrotxa, terra de vulcões

A paisagem da Garrotxa marca, de forma profunda, a alma das suas gentes. E deixa, no visitante, uma impressão duradoura por uma das regiões mais fascinantes da Catalunha espanhola 

O verde. Um verde intenso, frondoso e húmido cobre a natureza bruta do Parque Natural da Zona Vulcânica da Garrotxa (PNZVG), na Catalunha.
Uma paisagem por onde corre o rio Fluviá, moldada por mais de 40 cones de vulcões, que se confundem com as montanhas da zona protegida desta região da província de Girona, nos Pirenéus Orientais. Aquando das últimas erupções, há mais de 11 mil anos, a lava ocupou o leito dos rios e invadiu os vales, criando vastas planícies férteis. A natureza dava assim as últimas pinceladas na geografia da Garrotxa, cujo nome, em catalão, significa "terra áspera, rasgada e de mau pisar".



Apesar da definição, as autarquias locais têm investido, nos últimos anos, na limpeza e recuperação dos antigos caminhos pedestres, como forma de promover o turismo. Hoje existem 2 500 quilómetros de trilhos sinalizados, espalhados por três regiões vizinhas, Ripollés, Garrotxa e l'Alt Empordá, que se estendem dos Pirenéus ao Mediterrâneo.
Em Olot, capital da Garrotxa, em pleno Parque Natural, um grupo de 11 pessoas tinha encontro marcado para as nove da manhã, em frente do Museu dos Vulcões, no meio do jardim botânico do Parque Nou. No museu, um palacete do século XIX de uma quinta senhorial, reconstituem-se os fenómenos sísmicos e vulcânicos, com a ajuda de um simulador de terramotos. Mas, nessa manhã nebulosa de final de Verão, aquele grupo encontrava-se pela primeira vez para percorrer, durante cerca de quatro horas, os 14 quilómetros da Rota dos 10 Vulcões. Iniciaram a marcha seguindo os passos apressados de Jordi, o guia, pelas ruas da cidade. Um quarto de hora depois, já com a respiração ofegante, pararam num caminho rural com vista sobre a cidade de Olot e as montanhas que a rodeiam. Jordi lançava o desafio: Quem conseguiria distinguir, entre elas, as crateras dos vulcões? Nestes percursos guiados, as explicações são sempre em catalão, mesmo quando a maioria dos seguidores utiliza o castelhano, como era o caso nesse dia, embora não parecesse haver problemas de comunicação.


A partir dali, a paisagem urbana ficava para trás. Atravessavam veredas cobertas de musgo, protegidas do sol pelas copas das árvores; passavam por carreiros de terra humedecida e recuperavam o fôlego durante as curtas paragens. Jordi aproveitava para acrescentar informação sobre os fenómenos vulcânicos, a geologia e o clima da Garrotxa. A exuberante vegetação do Parque Natural deve-se às continuas precipitações anuais, cerca de 1 000 litros por metro quadrado absorvidos, na quase totalidade, pelos terrenos porosos de origem vulcânica. Segundo o ditado popular, "se não chove em Olot, não chove em mais lado algum".
Duas horas mais tarde, desciam em direcção ao Croscat, o mais jovem dos vulcões da Península Ibérica, coberto de vegetação e rodeado de vulcões de menor dimensão. Do lado norte, as explorações mineiras anteriores à década de 80 abriram as entranhas avermelhadas do Croscat, transformando-o num museu vivo.


Nos campos à volta, de terras porosas enriquecidas pela lava, cultivam-se mongetes, um feijão branco e pequeno característico da Garrotxa. A leguminosa que acompanha com frequência a butifarra um enchido de porco de origem catalã tornou-se conhecida graças à feira que lhe é dedicada na encantadora aldeia medieval de Santa Pau. Em meados de Janeiro, as ruelas entre casas de pedra enchem-se de gente para degustar as novas receitas elaboradas pelos restaurantes da região, que têm como ingrediente obrigatório o fesol (feijão) de Santa Pau.A aldeia fica a 10 quilómetros de Olot, a uma hora a pé do Croscat.
No sopé do vulcão, frente aos campos de fesols de Santa Pau, Jordi dá resposta às mais que prováveis dúvidas dos que o seguiam. "Agora estes vulcões estão adormecidos, mas é provável que acordem... dentro de dois ou três mil anos". Uma expressão de alívio espelhou-se nos rostos do grupo. Tinham percorrido metade dos 14 quilómetros e iniciavam o regresso ao ponto de partida, fechando o círculo. Mergulhavam de novo na floresta verde, junto ao imenso bosque de faias conhecido como Fageda d'en Jordá, deixando para trás inúmeras veredas a explorar. No último par de quilómetros, as bermas do caminho estavam repletas de amoras negras e carnudas que se derretiam na boca. Um manjar divino, para culminar uma caminhada de mais de cinco horas.


OLOT, A CIDADE DOS VULCÕES A designação de cidade dos vulcões não se deve apenas à geografia que rodeia Olot. No próprio centro urbano pode aceder-se ao Montsacopa, subindo uns degraus escavados na encosta, e desfrutar da paisagem privilegiada sobre a cidade, bordeando a boca do vulcão.
Silencioso há milhares de anos, o Montsacopa viu chegar o Homem e presenciou a destruição da antiga vila medieval, provocada pelos terramotos de 1427 e 1428, e a sua posterior reconstrução. No centro de Olot, os escombros deram lugar a um entrecruzado de ruas paralelas desenhado em volta de uma praça central, a Praça Maior que, no mês de Setembro, é o epicentro das Festas de Tura, em homenagem à padroeira da cidade. Durante cinco dias, os gigantes de Olot bailam nestas ruas, que borbulham de gente desejosa de participar em inúmeras actividades, como no campeonato do mundo de lançamento de caroço de azeitona ou na batalha de flores. Dias de euforia e boa disposição regados com muita ratafia, uma bebida doce, típica da Garrotxa, à base de ervas aromáticas e anis.
No resto do ano, um passeio pela pequena cidade de 30 mil habitantes permite descobrir fachadas modernistas, como a da Casa Gaietà Vila, junto à emblemática igreja de Sant Esteve, ou a Can Trincheria, a casa mais famosa da cidade, onde viveu uma família abastada do século XVIII. As decorações das várias divisões são as originais: paredes pintadas com cenas mitológicas, palácios, jardins imaginários e molduras que imitam matérias nobres. Na última das salas, está exposto um monumental presépio com dezenas de figuras que representam cenas bíblicas e da vida quotidiana. Difícil é encontrar a figura mais típica dos presépios catalães, o caganer, um boneco defecando no meio do cenário, que nem a Igreja questiona. O caganer tornou-se tão popular que hoje se fabricam versões com a imagem de personagens conhecidos, como a dos príncipes de Astúrias, de George Bush, ou a do Papa Bento XVI.



Ainda no centro histórico, o Museu dos Santos reflecte os últimos 100 anos da história de Olot, indissociável da fabricação de imagens religiosas. No início do século XX, proliferavam os ateliers que se dedicavam a este ofício, responsável pelo desenvolvimento económico da cidade. O primeiro deles abriu em 1880 com o nome de Arte Cristã, o actual Museu dos Santos, onde ainda trabalham cerca de 40 pessoas. Os moldes utilizados, alguns deles de dimensão humana e talhados por ilustres escultores catalães, podem ver-se numa sala junto à entrada. Hoje restam apenas sete desses ateliers, mas a estatuária religiosa de Olot continua a ser cobiçada pelo mundo fora. Da actual produção, 35% é exportada para os EUA e Canadá; Portugal e Itália são os maiores importadores europeus.


O VALE DE BAIXO
A menos de uma dezena de quilómetros a Oeste de Olot, já fora do Parque Nacional, descobre-se outra das paisagens da Garrotxa, o Vale d'en Bas, por uma teia de estradas que interliga oito povoações, situadas nas cercanias de afluentes do rio Fluviá. No vale estendem-se campos de milho, que reflectem os tons dourados de fim de tarde, dos quais se tem uma ampla perspectiva do alto da colina de El Mallol, uma vila em tempos amuralhada. Nos últimos dias de Verão, quando o céu já se cobria de nuvens, sentia-se o cheiro a lenha queimada das lareiras, na praça da igreja. Ao fundo do vale, para Este, no sopé de enormes montanhas, via-se o campanário da igreja da terriola de Sant Privat d'en Bas, um aglomerado de casas de cores esbatidas, em volta de uma praça com o nome de Maior, embora seja a única da aldeia.
Para sul, passa-se por Hostalets, uma povoação que cresceu em torno de hostales (albergues) onde pernoitavam viajantes de outros tempos. Ao entrar na calle Teixeda, a rua principal, percebe-se que esta tenha sido declarada monumento Histórico Artístico Nacional: nas casas de pedra sobressaem compridas varandas de madeira, de onde pendem gerânios de todas as cores, durante boa parte do ano.
Vagueando pelas estradas do Vale d'en Bas, descobrem-se as outras aldeias, tão próximas da cidade, quanto profundamente rurais.


ALTA GARROTXA E BESSALÚ
Na Garrotxa tudo é perto e as estradas são boas. Olot não dista mais de 30 quilómetros de qualquer das povoações da comarca, mas quando se visita a região pela primeira vez, as distâncias parecem alongar-se com as inúmeras paragens para fruir a natureza e conhecer o património medieval.
Meia dúzia de quilómetros a norte de Olot, entra-se em Sant Joan les Fonts, no limite do PNZVG onde começa a Alta Garrotxa. A localidade, dividida pelas margens do rio Fluviá, é a segunda maior da região, com cerca de 3 000 habitantes. O silêncio é quase absoluto, interrompido apenas pelo som da corrente do rio, atravessado por uma ponte medieval de pedra vulcânica. Seguindo o curso do Fluviá, desce-se até ao mosteiro do século XII, de estilo românico, com um pequeno jardim luxuriante.
A menos de cinco minutos de carro, passa-se por Castellfollit de la Roca, situado sobre um penhasco basáltico, com um quilómetro de comprimento e mais de 50 metros de altura, consequência da acção erosiva da confluência dos rios Fluviá e Toronell. Sobre a parede de basalto, a ala de casas à beira do precipício termina numa antiga igreja. Do alto do campanário pende uma bandeira catalã, com um triângulo azul e uma estrela branca, símbolo da reivindicação da independência dos "países catalães".
Saindo do Parque Nacional em direcção a Este, bastam dez minutos para chegar a Besalú, uma povoação que conserva um dos conjuntos medievais mais importantes e singulares da Catalunha. Da Idade Média ficou a marca de uma importante comunidade judaica que até 1415 representou cerca de 20% da população de 1 000 habitantes. O mais significativo dos monumentos é o Miqvé banhos judeus desco- berto durante escavações junto ao rio Fluviá, em 1964. A entrada em Besalú fazia-se, então, pela ponte românica fortificada, reconstruída em várias ocasiões ao longo do tempo, a última delas depois de dinamitada durante a Guerra Civil.


Nas ruelas medievais, as lojas vendem produtos da região, da gastronomia ao artesanato. Muito apreciadas são as louças de cerâmica pintadas, as espadas e armaduras e as bruxinhas de Besalú. Invulgar, a possibilidade de ver iluminadas as duas igrejas da povoação através de um vidro, gastando uma moeda de um euro.


À entrada de Besalú, na ampla Praça Prat de Sant Pere, abriu há um ano o Museu das Miniaturas, fruto da colecção de um joalheiro reformado da zona. Por três salas distribuem-se mais de duas mil peças, cada vez mais pequenas, até atingirem dimensões microscópicas.
Uma caravana de camelos no buraco de uma agulha ou um casal de búfalos em cima da pata de um mosquito são alguns dos exemplos, impossíveis de fotografar a olho nu. Os escultores trabalham com instrumentos de microcirurgia oftalmológica e praticam apneia para diminuir o ritmo cardíaco e conseguir movimentos precisos.


Fim de tarde, fim da viagem. O regresso é em direcção a Girona e ao Mediterrâneo, por uma estrada entre campos de girassóis, que reflectem os tons amarelos dos últimos raios de sol. Para trás fica a Garrotxa, as povoações medievais, as planícies, as montanhas e os vulcões da comarca verde e frondosa de natureza bruta.




Adim

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