Auvergne, terra dos vulcões adormecidos

Chamam-lhes os Gigantes. Dezenas de vulcões espalhados por uma região que, se um dia foi agreste, fervilha, por causa deles, de vida. Nas montanhas, nos vales e cidades, Auvergne deve muito a este fogo que lhe moldou a paisagem
Esqueçamos a invernia. Maio não foi feito para neves e frio. Dele esperamos flores e sol, mais a mais num lugar onde ambos abundam, percebe-se do avião, à chegada a Clermont-Ferrand, pelo verde da paisagem. Auvergne, tão ao centro da França e tão polar, nestes dias de quase Junho em que somos convidados a conhecê-la.

Nas leituras do avião, ainda podemos aquecer-nos na imaginação do calor da lava a moldar a paisagem, afugentando bichos e homens. Que a região para onde milhares de portugueses foram viver nas últimas décadas, atraídos por oportunidades de trabalho, muitas das quais no gigante fabricante de pneus Michelin, é famosa tanto por esta indústria de vulcanização da borracha como pelos vulcões que conseguimos observar antes de aterrar no primeiro aeroporto do mundo que foi dotado de um piso em betão, em 1916, para serviço dos Breguét IV, aviões fulcrais para a vitória francesa na I Grande Guerra.
A ideia de pôr betão numa pista de terra batida, e o "avião da vitória", são coisas dos irmãos Michelin e descendência, que se metiam em tudo o que mexesse, incluindo, claro, a aviação. Em honra deles, um Bréguet brilha ao sol, feito estátua, no exterior da pequena aerogare. Onde há obras executadas por portugueses. Onde levantamos um carro de aluguer a uma jovem cujos sogros, refere, são de São João da Madeira. Esta tríade: Michelin, portugueses e vulcões, está visto, há-de marcar esta viagem propiciada pela abertura de uma nova rota da Ryanair entre o Porto e Clermont. Na qual quase só se escuta a língua de Camões.
O avião em que partimos carregou-se de turistas acabados de gozar um fim-de-semana por cá e de portugueses, muitos ainda de sorriso amplo e camisolas negras, ostentando a efígie de D. Afonso Henriques. Vimaranenses, estes ganharam a Taça de Portugal ao Benfica, mas chegarão a Clermont e não poderão festejar muito efusivamente, que por lá o ASM, grande clube local de râguebi, fundado, pois claro, pela Michelin, anda na mesma senda do "glorioso" de Lisboa, tendo visto a glória escapar-lhe entre os dedos no campeonato francês e na Heineken Cup, o equivalente à Liga dos Campeões no futebol.

Mesmo assim, é de amarelo e azul que se vestem muitas janelas no centro de Clermont, indiferentes ao desaire. A mesma cidade que, numa enorme estátua na sua praça principal, lembra com orgulho Vercingétorix - um guerreiro que acabou morto, em Roma, às mãos do Império, mas que antes disso vencera, e quase rechaçara desta região da Gália, as legiões de Júlio César - não haveria de agir de forma diferente com os seus heróis da actualidade. Que, como o chefe gaulês, ganharam umas vezes e perderam outras. É uma forma de estar na vida, está visto.
A cidade que foi também de Catarina de Médicis e de Blaise Pascal tem uma história riquíssima. Em 1095, Urbano II lançou a partir de Clermont a primeira cruzada, iniciando um longo período de confrontação entre cristãos e muçulmanos. No local onde o concílio aconteceu, ergue-se uma altiva catedral, em pedra negra, que demorou 700 anos a ser concluída, e que é em si o símbolo da entrada do material vulcânico na arquitectura local e regional que, até ao século XII, se bastava com os tons claros do calcário. Esse que haveremos de ver, dominando a paisagens das pequenas vilas a leste, numa zona de aldeias e castelos a que chamam, por aqui, a "Toscana de Auvergne".
Vulcões no nevoeiro
Para já, a nossa guia chama-nos a atenção para o Puy de Dôme, o cone adormecido, rei dos muitos vulcões, quatro vintenas, para falar à francês, que existem distribuídos por várias cadeias, na região. Da Rue de Gras, ao cimo da qual se ergue a Catedral da Assunção, o porte altivo daquele monte, de ar inofensivo, destaca-se, como se o monumento natural, que alberga um templo pagão, dedicado a Mercúrio, quisesse fazer frente à verticalidade gótica do templo cristão.
Sorte de principiante, esta vista. O sol que nos recebeu na primeira tarde em solo gaulês não quis nada com a Fugas praticamente todo o resto da viagem. E assim, a promessa de uma vista deslumbrante na subida em comboio panorâmico ao Puy de Dôme, no dia seguinte, quase não passou disso mesmo, de uma promessa. O monte cercou-se de nuvens, a fazer-se todo mistério, e ainda por cima recebeu-nos com temperaturas abaixo de zero que retinham uns fiapos de neve no cume, a quase 1500 metros de altitude.
Estamos em pleno Parque Regional Natural dos Vulcões de Auvergne, no dorso de um deles, e nada. Nem um para amostra. Até que, ao descer, por breves minutos, o segredo se quebra. Levantado o véu de névoa - Obrigado ó Mercúrio, que São Pedro não fez por merecer! – ei-los que surgem, pontuando a paisagem, os puys, como lhes chamam aqui, que, até há sete mil anos, foram expelindo a lava e cinzas que acabaram por dar forma, e fertilidade, a toda esta região.
Deixámos o Puy de Dôme para trás e metemo-nos para sul, na companhia de um outro falcão à caça, a caminho de Mont-Dore. Viajámos debaixo de nuvens e chuva. Até que, a uns 1300 metros de altitude, nos vimos debaixo de neve. Dessa que cai e permanece, esbranquiçando o fim de Maio, as margens do lago de Guéy, que, como outros por aqui, encheu uma cratera; dessa que dá a Mont-Dore, quando a vislumbramos, estendida num vale, à distância, um ar de estação de esqui.
Bom, na verdade, Mont-Dore é mesmo uma estação de esqui. E famosa. Mas ninguém espera acordar num hotel, em frente ao teleférico e às pistas, e vê-las quase a jeito de serem reabertas, nesta altura do ano. Não estava no programa. O tempo está louco, hão-de fartar-se de nos dizer, como que desculpando-se, todos os que nos receberam para comer ou dormir. Tinham razão. Que o diga um grupo de pedestrianistas, que vinha preparado para uns amenos 15 a 20 graus, ou os loucos ciclistas que haveríamos de encontrar, na manhã seguinte, subindo a montanha, de saco plástico a proteger o calçado.

Numa das tréguas de um nevão, Adriano Miranda conseguiu fotografar finalmente os rochedos Tuilières e Sanadoires, monumentais marcas do vulcanismo com os quais se abriu este artigo. Debaixo deles, a estrada que se embrenha pela floresta de Guéry é uma delícia para os amantes da natureza, que merece ser percorrida no Outono, quando as faias filtram a luz em tons de amarelo, laranja, vermelho e castanho, à espera do Inverno. Ainda assim, verdes como as vimos agora, estas árvores que têm uma forma muito própria de estenderem os seus ramos ao sol são uma bênção. Que uns monges ortodoxos aproveitaram, instalando aqui um mosteiro.
Corremos de novo para Mont-Dore, até ao mais antigo funicular de França em funcionamento, para uma volta que, lá em cima, acabará numa amena conversa com João Freitas, natural de Romarigães, a aldeia da Casa Grande Aquilino, em Paredes de Coura. Vive e trabalha aqui este minhoto, já com filhos franceses, que, como diz a cantiga, há-de ir a Viana, terra da mulher, este Verão. Descemos a dar-lhe felicidade, essa que todos experimentamos quando descobrimos a pátria onde menos esperamos.
Mal sabíamos o que reservava ainda o dia. Terminada uma interessante visita às termas de Mont-Dore, um edifício que guarda ainda muitos vestígios da utilização destas águas tépidas pelos romanos, apontámos o GPS para Besse. Mais concretamente para uma quinta, a Ferme la Clef des Champs, algures lá nas montanhas, um pouco para sudoeste, onde nos prometiam uma experiência numa queijaria que produz um dos vários queijos com denominação de origem controlada de Auvergne, o Saint Nectaire.
Chegámos, anunciámo-nos, em francês, como os jornalistas "portugais", e logo a sorridente mulher nos mandou, literalmente, falar em português. Maria Adelaide, vida que, só por si, dava um belo livro, de tão intensa, veio aqui parar depois de responder a um anúncio do jornal de um solteiro que procurava companhia. Casou-se. E é o filho, Phillipe, estranho à língua de Camões, e a nora Nathalie, de raízes na Holanda, que fazem o famoso - e característico - queijo de vaca desta zona, conseguido, dizem-nos, por causa dos pastos de altitude em que se alimenta o gado da região.
Em Vichy, a das termas
De estômago forrado com o queijo e com a tarte de maça da dona Adelaide, afastámo-nos da serra, do frio e da neve, seguindo mais para leste, até St. Germain de Lembron. Quase ao chegar, uma nesga de sol apareceu a pedir que fotografássemos Chalus, uma aldeia que, assim, com o seu castelo do século X, tomava, à distância, ares de postal ilustrado carregado de história. Uma característica comum a quase duas dezenas de povoações desta pequena planície vinhateira, atravessada pelo rio Allier, há-de explicar-nos Mireille Marotte, em cuja casa, aberta como turismo de habitação, passámos a noite.
Dormimos num verdadeiro museu, privado, da I Guerra Mundial, fruto de uma paixão coleccionista do homem da casa - e cozinheiro de mão cheia - Fabien. Que nos prepara uma truffade - batata gratinada com muito, muito queijo - a pedir meças a uma outra que experimentáramos, no primeiro dia, no aconchego do restaurante Pile Poele, em Clermont. Mas corremos dali, pela manhã, que o nosso roteiro ainda anunciava umas voltas por esta região que de facto lembra a Toscana, pontuada de aldeias aqui e ali, antes de nos apontar a rota para norte, a caminho de Thiers e, depois, Vichy.
A cidade de Vichy, que preserva ainda muito do seu esplendor Art-Deco, merece uma visita, mesmo de quem não pretenda usufruir das suas termas, cuja fama há muito ultrapassou fronteiras. Merece-o também, por oposição, Thiers, mais a sul, de ar mais pobre e sujo, encavalitada sobre um rio de forças tremendas que alimentaram, durante séculos, as máquinas de uma das mais famosas indústrias de cutelaria da Europa. Se num lado as termas se transformam em spa, por aqui, as tradições reinventam-se também. E artesãos, como Emmanuel Laplace, quinta geração na família no atelier 1515, tornam-se artistas, conquistando o mundo com as suas criações.
E já que se fala de facas e garfos, guardemos umas linhas para dizer algo da gastronomia auvergnat. Em terra de queijos, de vinhos à procura do seu espaço - como os da pequena região de St. Pourçain, nas planícies do Allier, no Norte - e famosa também pelas lentilhas, cultiva-se o gosto francês pela boa mesa. Que atinge o clímax na casa de campo de Jean-Marc Pourcher, chefque desistiu do seu buliçoso restaurante na cidade para passar a cozinhar, à vista, para pequenos grupos. É ele que nos oferece, no final de um repasto, a síntese perfeita desta passagem por Auvergne, num leite-creme a lembrar Portugal, em que a menta das pastilhas de Vichy explode na boca, como um vulcão. Bem fresco, no caso.
Património
Mil castelos?
! E quantas igrejas?
Diz-se por cá que Auvergne é terra de mil castelos. Descontado o exagero, na verdade esta região francesa tem mais castelos que Portugal. Em ruínas alguns, como por terras lusas; classificados e transformados em museus outros, como por terras lusas. Há outros ainda que são privados, e habitados, o que já não acontece em Portugal. E assim resistem na paisagem estes símbolos de outros tempos, em que esta era terra de muitos senhores, cada qual com o seu povo espalhando casas em ruas estreitas, pelos montes em volta. Num território cheio de vales e pequenas elevações, adivinha-se qual o efeito desta organização social e urbana na paisagem.
Vê-se bem, este lado medieval de Auvergne, a leste de Clermont, a bordo de um Ford Mustang vermelho. Quem o conduz é Michel Treille, agente turístico cuja empresa se especializou na criação de roteiros que podem ser percorridos em carros antigos. Um luxo ao alcance apenas de alguns, mas que tem, garante-nos o orgulhoso empresário, o seu público. Gente que nutre grande paixão por estas máquinas, pelo prazer de ouvir os seus motores quebrar a monotonia das estradas secundárias, bem pavimentadas, onde raramente passa um carro.
É tudo nosso. Pena que a chuva, a chata, não nos deixe abrir o capot, que a ideia era poder abrir os olhos à imensidão da paisagem e levar com os cheiros da Auvergne campestre, a tal que se parece com a Toscana, pelas cores do casario, na cara.

Mas não vale pena o lamento. Que o castelo de Hauteribes, onde Michel nos leva e do qual ele próprio só ouvira falar, compensa o enfado da meteorologia. Lá dentro guarda-se e expõe-se uma das maiores colecções de mobiliário de França, incluindo peças que foram copiadas para o Louvre. E nas paredes, alguns originais de pinturas de personagens históricas como Luís XIV ou o cardeal Richelieu garantem realismo a este mergulho na história. Permitido porque o último dono do castelo, o marquês de Pierre, doou o edifício ao Estado, exigindo apenas que a colecção de mobiliário ali fosse mantida.
O visitante só tem que agradecer o gesto e aprender. Lembrar-se que asecretaire era uma mesinha cheia de pequenos espaços para guardar segredos (secret), própria de reis, rainhas, condes e marqueses. Que o povo, segredos, guardava-os, se quisesse, com o padre, em confissão. E não faltam por estas terras do centro de França de onde se lançaram as primeiras guerras santas e de onde parte o Caminho Francês para a outra grande peregrinação medieval, Santiago de Compostela, templos para lavarmos os nossos pecados.
O que espanta é que tantas igrejas tenham chegado aos nossos dias nas boas condições em que Auvergne as mostra aos turistas. Cinco templos românicos da região mereceram da UNESCO a classificação de Património da Humanidade. São eles Saint-Nectaire, Orcival, Saint Saturnin, Saint Austremoine (em Issoire) e Notre Dame-du-port, a esplendorosa construção em calcário, no centro de Clermont-Ferrand, em cuja cripta se venera uma imagem negra da Nossa Senhora da Boa Morte.
Deste quinteto maravilha, a Fugas teve oportunidade de ver ainda a igreja de Orcival. E de que forma! Subíamos a montanha sob uma chuva densa, a escurecer o céu, quando, como por milagre, as nuvens se abriram, por quinze minutos apenas, para que pudéssemos ver, pedra cinzenta brilhando a pleno sol nessa humidade, a vila medieval, adossada na montanha verdejante.
Tanto ou mais que o seu templo, a própria localidade, de tão bem preservada nas suas ruelas estreitas e casario de ar vetusto, é uma viagem no tempo, cuja passagem está bem vincada nas enormes portas da igreja, na madeira que resiste e no ferro trabalhado, no livro de cânticos guardado, atrás de grades, na misteriosa cave. Provas de que não são exagerados os elogios que os guias fazem ao património - religioso e não só - desta região.
Este recuo de séculos só o viríamos a experimentar nas ruas do centro histórico de Clermont, que preservam o desenho  e alguns edifícios de outros tempos, e de novo em Charroux, no departamento de Allier, no Norte. Esta pequena vilazinha fica situada no extremo sul de um vale vinhateiro, onde se produz o DOC Saint Pourçain e é, para quem, como nós, a desconhecia, uma surpresa de arregalar os olhos. E já agora a boca, que o mais conhecido restaurante da localidade, La Ferme de São Sébastien, propiciou-nos uma das mais interessantes experiências gastronómicas desta passagem por Auvergne.
Tudo por causa da mostarda, uma planta que até já não se cultiva por aqui. Para além do património, há gente interessada em preservar tradições, como a da produção da pasta condimentar de sabor característico, que se faz em três pequenas fábricas. E o chef Valérie Saigne fez questão de a usar numa pequena entrada à base de maçapão que, se parece doce ao entrar na boca, logo nos agita o palato na textura e intensidade amarga da moutarde. A pedir um bom branco, como o que nos foi servido.
O restaurante fica nos limites de um povoado pequeno, algumas ruas apenas, onde é possível distinguir o que resta das suas duas muralhas circulares, a mais interior em volta da igreja românica. A segunda muralha defenderia um perímetro mais largo, terminando em várias portas - tantas quantos os pontos cardeais. Percorre-se isto em menos de uma hora, e custa a entender que aqui, onde vivem algumas centenas, já viveram três mil pessoas. Que aqui, onde a torre da catedral parece inacabada (ou destruída), houve quatro igrejas e duas paróquias.
Charroux está na linha que separava as línguas faladas no Norte de França, agrupadas sob a designação de Langue d'oil, e as línguas do sul, o Langue d'oc. Tem o seu próprio museu mas é, ela própria, museu vivo, com as suas lojas de artesanato e uma casa onde um coleccionador abre a porta aos turistas para que estes possam ver, e escutar, centenas de relógios de todas as maneiras, feitios e mecanismos, marcando, síncronos, o avançar do tempo. E reserva-nos uma última surpresa made in Portugal. A loja do Açúcar, de Paula Amorim, filha de vianenses que mata as saudades da língua dos pais brindando, com a Fugas, com um café. Antes de uma despedida cheia de emoção.
Michelin
Dos vulcões à vulcanização
Não será apenas uma questão de comunicação. Mas se não fosse a comunicação...Era uma vez, no final do século XIX, uma dupla de irmãos que fabricava pneus em Clermont-Ferrand, numa altura em que poucos acreditavam que uma coisa cheia de ar pudesse aguentar o peso de máquinas e pessoas. A questão é que o engenho dos manos André e Edouard Michelin ia muito para além dos produtos pelos quais ficaram famosos. E se ninguém crê que uma bicicleta anda melhor com umas rodas calçadas com pneumáticos desmontáveis, toca a convencer o ciclista da moda, Charles Terront, a percorrer com eles a mítica prova Paris-Brest-Paris, organizada por um jornal de grande circulação. Que ganhando, como viria a acontecer, ninguém mais duvidará.
Esta é apenas uma das histórias que podemos conhecer na Aventure Michelin. Uma exposição gigante, ocupando uma das antigas instalações fabris, das muitas que a empresa preserva em Clermont-Ferrand. Cidade na qual é, há muito, o maior empregador, sendo responsável, também pela atracção que esta região suscitou entre os emigrantes portugueses que procuravam trabalho em França. Clermont orgulha-se desta ligação a uma empresa que lhe criou o clube de râguebi pelo qual batem os corações dos locais e que, ao longo de décadas, contribuiu para o desenvolvimento urbano, ao construir, por exemplo, bairros para os seus funcionários.
A história deu no que deu, já se sabe. A empresa conquistou primeiro a França e depois o mundo, tornando-se numa das maiores, e mais inovadoras, multinacionais do sector. Mas nem sempre foi assim. A Michelin construiu um carro - o Eclair, na imagem - porque nenhuma marca queria arriscar-se a montar pneus nos seus automóveis. E em 1900, quando o uso destas novas viaturas ainda se começava a disseminar, os manos criaram guias, pequenos livros para ajudar os condutores, nas suas viagens a encontrar tudo o que faz falta a quem anda de carro.
Comunicação, pois claro. Nos anos 20, a empresa tinha cem pessoas num escritório que, por telefone, faziam as vezes do actual ViaMichelin.com da internet, sugerindo rotas e pontos de interesse pelo caminho, a quem pretendia viajar. E se as estradas não estão sinalizadas, eles, que em 1910 tinham começado a produzir mapas, haveriam de lançar uma petição nacional em favor desse objectivo. "Tudo o que é bom para o automóvel e bom para o negócio do pneumático", era o lema.
A história é, pois, mais do que de pneus, de toda uma revolução: numa cidade, no mundo, na nossa mobilidade. Está lá quase tudo - do ponto de vista de uma marca, é certo - o que aconteceu. E ainda há espaço para explorar o futuro desta indústria que começou com a descoberta, no século XIX, do processo de vulcanização com o qual, pelo recurso a altas temperaturas, se consegue transformar um plástico duro na borracha que, como muitas outras inovações pelo meio é certo, hoje equipa as nossas viaturas.
Quis a suprema das coincidências que um lugar cheio de vulcões se tenha económica e industrialmente desenvolvido, desta forma, pelo poder do fogo sobre a matéria, mitologicamente associado ao deus romano Vulcano. E que hoje Clermont-Ferrand, e Auvergne, sejam indissociáveis da história desta empresa e do vulcanismo. Que tem, como a Michelin, o seu espaço de descoberta. Este outro parque temático, em plena área protegida, com vista para o Puys de Dome, é outra aventura. Que não se cinge, por sinal, ao desejo de explicar as origens do território em que foi construído.
Vulcania é um bom ponto de partida para caminhadas pelos montes adormecidos, se o tempo permitir. Mas as instalações do parque, em vários pisos naturalmente iluminados por um imenso cone que parece levar a luz às profundezas da terra, têm espaços que garantem horas e horas de animação. Equipado com as mais recentes tecnologias digitais, a experiência de interacção é muito forte - as crianças adoram-na - permitindo, ao mesmo tempo, estimular a curiosidade, ou aprofundar conhecimentos sobre um tema que convoca em cada um de nós o medo da destruição.
Da Europa, à Asia, da América à Africa, como por aqui se pode ver, estas montanhas foram muitas vezes associadas à intervenção divina sobre a Terra. Geraram medo, e um sem número de histórias. E um fascínio que, infelizmente, pode levar à morte, como aconteceu com Katia e Maurice Krafft em 1991, durante uma erupção no Monte Unzen, no sul do Japão. Neste momento, num dos espaços de Vulcania, exibem-se algumas das melhores imagens recolhidas durante décadas por esta dupla de vulcanólogos, pioneiros no esforço de captar, em imagens, a beleza destes fenómenos.
Longe destes perigos, e agora que a tecnologia o permite, um filme em 3D mostra-nos como teriam sido as erupções dos Gigantes de Auvergne, que terminaram há sete mil anos. Sem riscos para a nossa própria vida, é vê-la a chegar, borbulhante, a lava, quase a queimar-nos o rosto. É vê-las cair, como as bombas sobre a nossa cabeça, as enormes pedras sobre as quais Auvergne se ergueu. E, assim sentados nesta realidade distorcida por uns óculos, é perceber como, de um sítio inóspito, se fez uma terra a que dá vontade de regressar.
GUIA PRÁTICO
COMO IR
A Ryanair é o meio mais directo, e barato, de chegar a Auvergne, através da ligação Porto-Clermont-Ferrand, com saídas de Portugal à segunda-feira de manhã e regresso na sexta-feira à noite. Preço sob consulta no site da companhia.
QUANDO IR
Pelo esqui e pela beleza dos territórios de montanha, Auvergne recomenda-se, de facto, no Inverno, mas para termalismo, caminhadas, banhos nas lagoas e outras actividades ao ar livre, a Primavera e o Verão são mais ajustados. Mas convém não desdenhar uma visita à região no Outono, quando a paisagem deixa a monotonia do verde a assume uma paleta de cores quentes imperdível.
COMO CIRCULAR
Se o objectivo é conhecer a diversidade do território de Auvergne, o carro é imprescindível. Mas a região oferece muito boas condições de circulação a quem pretenda conhecê-la também de bicicleta, por exemplo. Os pedestrianistas, e os amantes do trekking, não foram esquecidos por quem desenhou, pelo meio das montanhas, trilhos de cortar a respiração (pela vista que alcançam, claro).
O QUE FAZER
Vale a pena visitar a Aventura Michelin (9 euros, adultos, 5 euros, crianças), o Parque Vulcania (25 euros adultos, para um bilhete de dia inteiro, e 17 euros para a faixa dos 6 aos 16) e dar uma volta no comboio panorâmico do Puy de Dôme (9,70 adultos e 3,40 crianças com mais de 4 anos). Clermont tem vários museus e, na região, o património religioso, as rotas dos castelos e dos queijos e o valor histórico de edifícios termais como em Mont-Dore ou Vichy, pedem a atenção dos turistas. Os amantes de carros clássicos podem experimentar os serviços da Classic Arverne, mas devem estar preparados para deixarem uma caução de 2000 euros e para o preço de 296 euros/dia para alugar, por exemplo, o Ford Mustang.
ONDE FICAR
Para uma estadia curta, que se cinja a Clermont, o Kyriad Prestige, onde a Fugas ficou alojada, é uma boa opção, a poucos metros do centro (quartos duplos desde 95 euros). Em Mont-Dore, ficamos no Puy Ferrand, a metros das pistas de ski (duplos a partir de 70 euros). Mais aconchegante, o ambiente da Maison de Marie Camille custa para cima de 77 euros, e é um bom exemplo da ampla oferta de turismo de habitação e em espaço rural, que podemos encontrar um pouco por toda Auvergne.
O QUE COMER
A cozinha Auvergnat é de grande qualidade - ou não estivéssemos em França. E tem no fabuloso e intimista espaço Domaine de La Siarre, no aconchegante Bistro 1050 de Mont-Dore, na Ferme Saint Sébastien, de Charroux, na Brasserie des Vulcans, no Parque Vulcania, ou no moderno Pyl Pyl, na gare de Vichy, espaços de reinvenção de uma cozinha mais tradicional que experimentamos, logo no primeiro dia, no Pile Pôele, no Centro de Clermont. O queijo, está sempre presente nas refeições. São tantos, os da região, que em Charroux nos foram apresentados num carrinho de venda ambulante.

Adim

Sem comentários:

Enviar um comentário

Instagram